domingo, 14 de outubro de 2007

Texto para Formação III

Gente, esse mês é a vez do professor Antônio Carlos. Nesse texto ele faz uma análise muito pertinente e atual sobre a questão: afinal de contas, pra que serve a Arte? Ele aponta possibilidades de respostas onde menos se espera: o mundo do trabalho. Trabalho entendido aqui não como a servil venda da força de trabalho, mas como construção da vida material de forma autônoma e criativa. Esse é mais um dos textos que tem nos ajudado a responder à pergunta: Por que investir na ampliação do universo cultural das pessoas? (O que ele chama de Educação Artística é o que estamos chamando de Edcuação pela Arte, ok?)

Boa leitura!!!

Educação Artística, Trabalho e Vida
Antonio Carlos Gomes da Costa

"Todas as pessoas têm disposição para trabalhar criativamente, o que acontece é que a maioria jamais se dá conta disso".(Truman Capote)
"Imaginar é mais importante do que saber, pois o conhecimento é limitado, enquanto a imaginação abarca o universo". (Albert Einstein)

Palavra inicial
“Educação Artística e o Ganha-Pão” foi o texto com que eu dialoguei para redigir estas páginas. Trata-se de um estudo sobre o significado da educação artística, para as perspectivas econômicas dos educandos, independentemente do ramo de atividade em que pretendam atuar. A primeira indagação é se a educação artística deve ser considerada um luxo, algo complementar ou meramente acessório em relação ao ensino das matérias essenciais, como línguas, ciências ou matemática. A resposta é não. O desenvolvimento da criatividade e do senso estético é, e será cada vez mais, um requisito importante para se ingressar, permanecer e ter sucesso no novo mundo do trabalho.

A arte na constituição do humano

A verdade é que somos animais lingüísticos e todas as formas de linguagem nos servem de meio de expressão oral, visual ou corporal. O fato de lembrarmo-nos do passado e imaginarmos o futuro permite planejar e agir de um modo que nos torna únicos entre os animais. A verdade é que somos capazes de produzir e, através da comunicação, fazer circular sentidos.A arte, ainda nos tempos das cavernas, permitiu ao homem compreender a atribuir sentido ao mundo e à sua atividade sobre ele. A capacidade de configurar sua experiência passada e presente e discernir o seu futuro, desde os primórdios da humanidade, é alguma coisa ligada indissoluvelmente à experiência estética.A vida, em geral, e o mundo do trabalho, em particular, valoriza e recompensa aqueles que apreendem e incorporam – em sua maneira de ver, entender a agir – os padrões novos que – cada vez com maior velocidade – emergem da experiência humana. Isso é particularmente válido para uma época de transição no processo civilizatório, como a que presentemente estamos vivendo.Foi através da arte que, pela primeira vez, o homem entendeu e representou o mundo em torno de si. A idéia é de que esta atitude não é alguma coisa, que ficou esquecida em algum lugar do nosso passado. Nós carregamos conosco essa capacidade de aprender a configuração do nosso mundo interior ou exterior e objetivá-la em algo dotado de sentido, sem ter, para isso, de recorrer à religião, à filosofia e à ciência. É nisto que consiste a experiência estética.O senso estético é uma maneira permanentemente válida de apreender o mundo e atuar sobre ele, através de uma atividade dotada de sentido. Isto é especialmente válido quando consideramos como objetivos da educação a realização das potencialidades do ser humano e a sua preparação para a cidadania e o trabalho.A ciência, a filosofia e a religião também exercem esse papel de preparar o ser humano para compreender e atuar sobre o mundo. Cada qual à sua maneira, essas formas de relacionamento do homem com o mundo natural e humano que o cerca constituem o que há de especificamente humano em nossa natureza, que é a cultura.

Um novo mundo do trabalho

Num mundo do trabalho que se “desmaterializa”, grande parte das habilidades específicas serão aplicadas por máquinas inteligentes, isto é, máquinas capazes de substituir, não somente o esforço muscular humano mas, em medida cada vez maior, o seu esforço cerebral.Numa situação como essa, as aptidões e destrezas manuais, a capacidade de seguir instruções, a prontidão para obedecer a comandos, a capacidade de concentração tendem a ser, cada vez mais intensamente, substituídas por habilidades básicas e de auto-hetero e co-gestão como: percepção do todo, capacidade de expressar-se, capacidade de manter-se auto-motivado e de motivar os outros, capacidade de contribuir criativamente na solução dos problemas em grupo, de construir em conjunto, de adaptar-se a novas situações, de ensinar e de aprender com os outros, capacidade de avaliar e de deixar-se avaliar.Num mundo do trabalho onde o emprego na área pública ou privada parece não ser mais a única e, a médio e longo prazos, nem a principal forma de inserção na vida produtiva, é preciso preparar as novas gerações de trabalhadores (não necessariamente de empregados) de forma inteiramente diversa daquela pela qual fomos preparados.Mais do que observadores de normas, seguidores de instruções e fiéis observantes das rotinas laboriais, o novo mundo do trabalho requer pessoas que sejam criativas, raciocinem e resolvam problemas e, sobretudo, que sejam capazes de autodeterminar-se, assumindo responsabilidades e correndo riscos, ou seja, criando o seu próprio futuro.

Educação, arte e trabalho

Hoje, já existem vários estudos que associam o aumento da escolaridade a ganhos em produtividade e renda por parte dos trabalhadores. Em razão disso, é crescente entre os empregadores o interesse em aumentar os níveis educacionais de sua força de trabalho. Esse interesse, no entanto, restringe-se ao ensino da linguagem, do cálculo e de habilidades específicas. A educação artística é vista como uma espécie de perda de tempo, algo inteiramente acessório, mais próximo do lazer que do trabalho, “um luxo”.No pólo oposto dessa visão encontramos os arte-educadores. Para eles, a educação artística justifica-se por si mesma. Sua importância está radicada no seu caráter autocriador do humano e seria quase uma afronta associá-la à educação profissional.Assim, nos deparamos com duas posições antagônicas, mas cujo resultado prático é exatamente o mesmo. A primeira, a de que a educação artística é tão sem importância, que não vale a pena considerá-la como algo de útil na preparação das pessoas para o mundo do trabalho. A segunda, a de que a educação artística é tão importante em si mesma, que é um rebaixamento considerá-la de forma pragmática, como uma modalidade entre outras de preparação para o mundo do trabalho.A posição que supera o falso dilema vivenciado nessa polarização desnecessária e estreita é a constatação de que a educação artística, tomada em si mesma, sem nenhuma submissão à dimensão produtiva, exerce sobre esta uma influência extremamente positiva. Isso quer dizer que a educação artística não deve e nem necessita tornar-se instrumento da educação profissional. Ela deve, isto sim, é converter-se num poderoso catalisador do desenvolvimento humano, tanto no campo da educação básica, como no campo da educação profissional. Nem paralelismo, nem incorporação, mas convergências e complementaridade.É certo que, seja para o jovem atuar como empregado no setor público ou privado, seja para atuar como auto-empregado, na economia informal, seja para atuar como empreendedor, em micro, pequenas, médias ou grandes empresas, a educação artística tem tanto a contribuir como a educação básica ou a educação profissional.A verdade é que, para trabalhar lidando com pessoas, com grupos, com idéias, com formas e relações as mais variadas, o ser humano deverá deter cada vez mais se polivalente, flexível, motivado, motivante e criativo.Os alunos que montam uma peça de teatro, por exemplo, aprendem:
- a atuar como uma equipe;
- a dirigirem e serem dirigidos;
- a expressar-se com a fala, o corpo e olhar;
- a programar-se dentro de um orçamento limitado;
- a buscar soluções criativas, inventando, adaptando e improvisando;
- a auto-hetero e co-avaliar;
- a ter disciplina de postura, de tempo e de lugar;
- a empenhar-se na busca da qualidade;
- a gostar e a valorizar o sucesso;
- a praticar a melhoria contínua e o respeito pela audiência;
- a repetir uma ação inúmeras vezes, aproximando-se gradativamente do que deve ser.
Nas feições do mundo do trabalho, que está surgindo nesta reta final de século e de milênio, alguns traços já se podem distinguir com nitidez:
- A qualidade deixa de ser diferencial competitivo e torna-se uma condição indispensável para se ingressar e permanecer no mundo do trabalho;
- O trabalho está se desmaterializando, ou seja, lidar com a informação e o conhecimento vai se tornando cada vez mais um requisito mais importante que lidar diretamente com matérias-primas. Esta é a característica mais marcante do ingresso na era pós-industrial;
- A robótica, a telemática e a informática virtualizarão, cada vez mais, o processo de trabalho, através de sons, imagens e símbolos, que o ser humano deverá ser capaz de acessar e aprender de forma instantânea.

O desafio da convergência

Um desafio para a cabal demonstração da convergência e da complementaridade dos mundos da arte e do trabalho, no âmbito da educação artística e no contexto da revolução pós-industrial, é a compreensão de como as habilidades desenvolvidas em um se aplicam ao outro.Nesse sentido, nos Estados Unidos, educadores estão desenvolvendo padrões curriculares e representantes da indústria vêm desenvolvendo padrões educacionais, com o objetivo de desvelar a compatibilidade e a fecundidade das relações da educação artística com as formas de organização e as tecnologias do novo mundo do trabalho.A medida em que esse trabalho se desenvolve, vai ficando cada vez mais claro que o conhecimento e a prática de habilidades artísticas pode desenvolver nos jovens competências fundamentais para o sucesso no mundo do trabalho e na vida, de um modo geral, no século 21.Três grandes eixos já foram identificados, como pontes seguras para o trânsito de benefícios da educação artística para o trabalho:
1º Eixo: habilidades desenvolvidas na educação artística podem ser transferidas para o trabalho e para a vida em geral;
2º Eixo: o conhecimento das artes potencializa a comunicação eficaz;
3º Eixo: a experiência estética propicia uma abordagem criativa à solução de problemas.
No plano objetivo, das artes se pode aprender a trabalhar com o tempo, o espaço, a luz, a cor, o som, o corpo, a voz, compromissos, agendas, recursos financeiros, meios de comunicação social, instrumentos de diversos tipos, materiais, tecnologia etc.No plano da subjetividade e da intersubjetividade, as artes propiciam o desenvolvimento de habilidades como trabalhar em equipe, planejar, negociar, liderar, ensinar, coordenar, acompanhar, avaliar, comunicar, administrar conflitos e gerar soluções criativas.Noções fundamentais como processo, raciocínio descontínuo, sistema e visão holística podem ser vivenciadas, através de atividades de educação artística, ao invés de serem apenas transmitidas em termos puramente conceituais. Isto sem falar nos conhecimentos, valores, atitudes, posturas, habilidades e destrezas, que a educação artística necessariamente desenvolve em todos os domínios da experiência estética.Essa nova maneira de ver a educação artística traz para os educadores, que atuam nessa área, novos e crescentes desafios:
- Desenvolver novas capacidades para o trabalho em equipe;
- Familiarizar-se com as novas tecnologias (informática e telemática);
- Abrir-se a outras culturas e a perspectivas distintas diante do trabalho e da vida;
- Buscar formas novas de aprender e ensinar o trabalho criativo;
- Dedicar tempo à busca e à transmissão das grandes mensagens modeladoras do trabalho e da vida na transição civilizacional que estamos vivendo;
- Construir pontes entre o mundo da educação artística e o mundo do trabalho;
- Divulgar a idéia de que, mais do que uma educação para a arte, a educação artística é uma educação para a vida, no sentido mais pleno do termo.

Conclusão

Estamos vivendo um período de transição civilizacional. A humanidade como um todo está ingressando em uma nova e decisiva etapa de sua evolução histórica.O mundo do trabalho sofre simultaneamente o impacto modelador de três forças:
- A globalização dos mercados, impondo novos patamares de exigência em termos de produtividade e qualidade na produção de bens e serviços;
- As novas tecnologias, que desvincularam, de forma definitiva, o crescimento da produção do crescimento do emprego e desmaterializaram o trabalho humano, levando a economia e a sociedade à era da informação e do conhecimento;
- As novas formas de organização do trabalho, que exigem um trabalhador diferente em tudo do tipo que prevaleceu no século 20.
As habilidades desenvolvidas pela educação artística, que eram periféricas e minoritárias no sistema produtivo, passam a ocupar uma posição central no perfil do trabalhador requerido pelas transformações deste fim de século e de milênio.Essas novas habilidades deverão ser desenvolvidas em três cenários:
- Escola
- Ações complementares à escola
- Educação profissional para e pelo trabalho

Em todos esses cenários, a posição ocupada pelo binômio arte-educação deverá ser ampla, profunda e corajosamente revista. Esta é uma causa pela qual vale a pena lutar.

5 comentários:

Anônimo disse...

O texto é excelente, assim como muito do que o Prof. Antônio Carlos compartilha com as pessoas. Destaco alguns pontos que se relacionam com nossa prática
- A concepção de arte como capacidade de conferir sentido ao mundo
- A experiência estética como uma das formas de produção da vida e forma de representação de mundo
- Aliada à arte estão a filosofia e a educação
- A arte como possibilidade de desenvolvimento de habilidades para o mundo do trabalho
- Necessidade de indivíduos criativos e criadores no mundo do trabalho

Tudo isso são elementos para uma formação integral do indivíduo. A meu ver, são maneiras de emancipação e reconhecimento de si num ambiente e numa cultura. Diante disso, o desafio é relacionar, na prática, todos esses elementos.

Andarilha disse...

Bem, lá vem eu comentar e quase escrever outro texto....

Como o próprio Antônio Carlos, o texto é ótimo e de uma amplitude.... (vida, trabalho, arte..)
Justamente por isso não consigo comentar todo o texto... tenho que ir por partes:

- “O desenvolvimento da criatividade e do senso estético é, e será cada vez mais, um requisito importante para se ingressar, permanecer e ter sucesso no novo mundo do trabalho.” Não é luxo, são habilidades para se “movimentar no mundo”.
Aqui faço uma relação do que seria a alfabetização para Freire. Mas não só o fato de alfabetizar, como o COMO: proporcionando autonomia, criticidade e construção do saber, além de estimular a própria criatividade.

- “Foi através da arte que, pela primeira vez, o homem entendeu e representou o mundo em torno de si.”
“O senso estético é uma maneira permanentemente válida de apreender o mundo e atuar sobre ele, através de uma atividade dotada de sentido. “
Acho que a gente podia estudar mais sobre esse lance da arte como representação do mundo.... ainda falamos disso de modo não muito seguro. Tenho uma sugestão de texto para os que se interessarem pelo assunto: O que é ficção – Ivete Walty

- “objetivos da educação a realização das potencialidades do ser humano e a sua preparação para a cidadania e o trabalho”
“o novo mundo do trabalho requer pessoas que sejam criativas, raciocinem e resolvam problemas e, sobretudo, que sejam capazes de autodeterminar-se, assumindo responsabilidades e correndo riscos, ou seja, criando o seu próprio futuro.”
Esses pontos podem nos ajudar a justificar nosso trabalho de Educação pela Arte, tanto de por que Educação e por que Arte.

- “educação artística é uma educação para a vida, no sentido mais pleno do termo. (...)Esta é uma causa pela qual vale a pena lutar.”
Nós precisamos acreditar nisso como ele acredita, para sermos grandes como ele....

Beijos
Ana Carolina

Anônimo disse...

O texto é fantástico, muito denso também. Pensando no aprofundamento de alguns conceitos como por exemplo o de estética ou experiência estética, senti a necessidade de estudar atentamente as palavras do Prof. Antônio Carlos relacionando com outros autores de estudos em arte-educação. No texto fica evidente a preocupação com a formação integral do sujeito e sua relação com a vida. Me lembrou também o texto da Teca Brito onde ela diz: importa prioritariamente o sujeito da experiência... sua formação integral. E o Enito quando fala que a arte é uma possibilidade de exercermos nossa humanidade. Adorei!

Anônimo disse...

É impressionante! O EMCANTAR começou por meio da arte e ainda assim nos apropriamos tanto de algumas áreas do conhecimento e outras só agora tem nos tornado mais comum. Esses textos revelam-me debates ainda embrionários no EMCANTAR. Muito diferente do que sinto quando leio, por exemplo, Aventura Pedagógica, em que nada é novidade parece só fortalecer o que sempre discutimos, estudamos e buscamos por em prática. No caso deste e dos textos anteriores não, embora seja o mesmo autor, trás elementos ainda novos pra mim (acho que pra todos nós). O texto simplesmente responde perguntinhas que recentemente ainda nos causava muita inquietação. Por que, afinal de contas, é importante trabalhar arte nas nossas oficinas? O que de diferente a gente causa na vida dos participantes, ao trabalhar as linguagens artísticas? O que é a tal da concepção estética?
É isso aí galera! Teoria e prática caminham de mãos dadas e namorando!!!
Bjim e até o próximo.
Poli

Anônimo disse...

Gosto muito desse texto, sempre que posso e preciso releio. Realmente ele é muito denso, por isso a cada leitura descubro algum ponto importante que antes não tinha percebido. Porém a parte que me chama mais atenção todas às vezes é a de um exemplo no qual autor consegue, em poucos itens, mostrar os resultados que se pode esperar do trabalho realizado com uma linguagem artística. E é nesse exemplo que eu penso quando nós discutimos sobre “como mostrar resultado?”. Esse exemplo está logo abaixo:

“A verdade é que, para trabalhar lidando com pessoas, com grupos, com idéias, com formas e relações as mais variadas, o ser humano deverá deter cada vez mais se polivalente, flexível, motivado, motivante e criativo.Os alunos que montam uma peça de teatro, por exemplo, aprendem:
- a atuar como uma equipe;
- a dirigirem e serem dirigidos;
- a expressar-se com a fala, o corpo e olhar;
- a programar-se dentro de um orçamento limitado;
- a buscar soluções criativas, inventando, adaptando e improvisando;
- a auto-hetero e co-avaliar;
- a ter disciplina de postura, de tempo e de lugar;
- a empenhar-se na busca da qualidade;
- a gostar e a valorizar o sucesso;
- a praticar a melhoria contínua e o respeito pela audiência;
- a repetir uma ação inúmeras vezes, aproximando-se gradativamente do que deve ser.”

Bises mes amours...